Discurso da Servidão Voluntária


O “Discurso da Servidão Voluntária”, escrito em 1548 quando Étienne de La Boétie tinha 18 anos, é uma crítica à legitimidade dos governantes, chamados por ele de “tiranos”. La Boétie explica de que maneira os povos podem se submeter voluntariamente ao governo de um só homem: em primeiro lugar, pelo hábito, uma vez que quem está acostumado à servidão tende a não questioná-la; em seguida, pela religião e pela superstição que se cria em torno da figura do líder. No entanto, não são apenas esses dois métodos os elementos necessários para criar a servidão voluntária: o segredo da dominação consiste em envolver o dominado na própria estrutura da dominação, a saber, uma pirâmide de poder: o tirano domina meia dúzia, essa meia dúzia domina seiscentos, esses seiscentos dominam seis mil, e abaixo desses seis mil vêm todos os outros. Para dominar a meia dúzia, ou seja, os seus cortesãos, o tirano atira-lhes migalhas, e estes, gratos, aceitam a submissão. Essa estrutura de domínio é repetida, então, nos demais níveis: a meia dúzia em relação aos seiscentos; os seiscentos em relação aos seis mil; os seis mil em relação a todos os outros. Para La Boétie, os que estão em volta do tirano são os menos livres de todos, pois, se as outras pessoas estão obrigadas a obedecer, esses, além disso, querem antecipar os desejos do tirano, escolhendo, com essa atitude, livremente a própria servidão. Portanto, os que estão na base da pirâmide, os camponeses e artesão, são, em certo sentido, mais livres e mais felizes, pois após obedecerem a uma ordem, podem gastar o resto do tempo com o que quiserem; já os cortesãos, por estarem próximos ao tirano, estão afastados dessa liberdade. O autor quer levar seus leitores a refletir sobre uma questão que está na base da política: o motivo que leva as pessoas a obedecerem. Concretamente, o que está por trás dessa questão é entender a causa que pode levar uma pessoa a abrir mão de sua própria liberdade, já que, para obtê-la, o homem precisa apenas desejá-la. Assim, a servidão voluntária, em La Boétie, se refere à perda do desejo de liberdade, uma vez que, “os homens, enquanto neles houver algo de humano, só se deixam subjugar se forem forçados ou enganados”. Para ele, é possível que os homens percam a liberdade pela força, mas o que surpreende é o fato de não lutarem para reconquistá-la. No livro, são descritos três tipos de tiranos: os que chegam ao poder pela eleição do povo, pela força ou pela sucessão de raça. Mas, independentemente da forma como o tirano tenha chegado ao poder, o que intriga é o fato de as pessoas continuarem a obedecê-lo mesmo quando prejudicadas por ele. O autor defende ainda a igualdade de todos os homens na dimensão política: “Uma coisa é claríssima na natureza, tão clara que a ninguém é permitido ser cego a tal respeito, e é o fato de a natureza, ministra de Deus e governanta dos homens, nos ter feito todos iguais, com igual forma, aparentemente num mesmo molde, de forma a que todos nos reconhecêssemos como companheiros ou mesmo irmãos

Razões que nos levam a Servidão Voluntária
Ter nascido na servidão:  embora a natureza tenha uma grande força sobre nós, muito mais forte do que ela é o costume. Portanto, os homens são o que a educação faz de cada um. Em outras palavras, o autor descreve: “Assim é: os homens nascem sob o jugo, são criados na servidão, sem olharem para lá dela, limitam-se a viver como nasceram, nunca pensam ter outro direito nem outro bem senão o que encontraram ao nascer, aceitam como natural o estado que acharam à nascença”.

 Tornar-se “covarde e efeminado” sob a tirania ou mistificar a figura do líder: com a perda da liberdade, perde-se imediatamente a valentia [...]. Perdem também a energia em todo o resto, têm o coração abatido e mole e não são capazes de grandes ações. Os tiranos o sabem e, à vista deste vício, fazem tudo para piorá-lo. Por isso, seduzem os povos através de jogos(entretenimento), de maneira que, assim ludibriados [...], divertiam-se com o vão prazer que lhes passava diante dos olhos e habituavam-se a servir com simplicidade igual [...] à das crianças [...]”. Além disso, o povo, por não ter acesso ao soberano, cria um “mistério” em torno da sua figura que o faz respeitá-lo sem nunca tê-lo visto. Por isso, o autor acha estranho os súbditos se encherem de respeito e de veneração pelos tiranos, como se estivessem sob “o efeito de um encanto ou magia”, pois na verdade, “era o próprio povo que forjava as mentiras em que posteriormente acreditava”.

 A última, e talvez a mais importante razão, é a própria estrutura do poder, na qual “o tirano submete uns por intermédio dos outros”: “Parece à primeira vista incrível, mas é a verdade. São sempre quatro ou cinco os que estão no segredo do tirano, são esses quatro ou cinco que sujeitam o povo à servidão. Sempre foi a uma escassa meia dúzia que o tirano deu ouvidos, foram sempre esses os que lograram aproximar-se dele ou ser por ele convocados, para serem cúmplices das suas crueldades, companheiros dos seus prazeres, alcoviteiros suas lascívias e com ele beneficiários das rapinas. Tal é a influência deles sobre o caudilho que o povo tem de sofrer não só a maldade dele como também a deles. Essa meia dúzia tem ao seu serviço mais seiscentos que procedem com eles como eles procedem com o tirano. Abaixo destes seiscentos há seis mil devidamente ensinados a quem confiam ora o governo das províncias ora a administração do dinheiro, para que eles ocultem as suas avarezas e crueldades, para serem seus executores no momento combinado e praticarem tais malefícios que só à sombra deles podem sobreviver e não cair sob a alçada da lei e da justiça. E abaixo de todos estes vêm outros. Quem queira perder tempo a desenredar esta complexa meada descobrirá abaixo dos tais seis mil mais cem mil ou cem milhões agarrados à corda do tirano [...]”.

Maneiras de sair desta servidão


Para La Boétie, no entanto, essa pirâmide de poder pode ser quebrada no momento em que o povo quiser se livrar dela. Para ele, é espantoso ver um número infinito de pessoas submetidas a um só, como se estivessem encantadas pelo nome deste, uma vez que não deviam temer o poder do tirano, nem mesmo confiar nas qualidades dele, pois os trata desumana e cruelmente. Para o autor, nem é preciso combater o tirano, nem se defender dele, pois “ele será destruído no dia em que o país se recuse a servi-lo. Não é necessário tirar-lhe nada, basta que ninguém lhe dê coisa alguma. Não é preciso que o país faça coisa alguma em favor de si próprio, basta que não faça nada contra si próprio. São, pois, os povos que se deixam oprimir, que tudo fazem para serem esmagados, pois deixariam de ser no dia em que deixassem de servir. É o povo que se escraviza, que se decapita, que, podendo escolher entre ser livre e ser escravo, se decide pela falta de liberdade e prefere o jugo, é ele que aceita o seu mal, que o procura por todos os meios

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